A primeira raquete de Tênis, que minha memória agarrou logo ao ser avistada, foi uma Wilson de madeira com capa grená em couro. Na capa podia-se ler em letras grandes e brancas: Wimbledon. Era uma raquete esquecida brigando com algumas tralhas no quartinho da bagunça, localizado nos fundos da minha antiga casa. Aliás, antiga não, pois foi e ainda é a casa dos meus pais. Era uma raquete robusta para as minhas mãos de apenas oito primaveras e oito outonos incompletos. Fui saltitando agarrada à alegria pela descoberta, em direção à sala de estar, onde pela hora eu encontraria algum outro habitante terráqueo. Eu ia carregando a inquietude embrulhada naquela raquete. Ao avistar meu pai saquei logo o célebre “olha o que eu achei”, e recebi na devolução o angustiante – ao menos para uma criança – “deixa eu ver”, que não é ver apenas com os olhos, é lamber com a testa, segurando com as mãos maiores que as minhas, analisando a minha agora preciosa do cabo à cabeça, em uníssono silêncio e, ora e outra, sussurrando o monólogo ruminante: “hummmm”. Eu sabia que aquela sessão de espera só se encerraria diante de uma pergunta desafiadora. Eu sabia que se eu fizesse a pergunta errada meu pai não falaria mais que o óbvio “é uma raquete de madeira”. Não me recordo com impecável precisão quais e quantas outras perguntas perpassaram na minha cabeça. Todavia, a ilustre questão escolhida, como uma bailarina do Quebra-Nozes, permanece intacta: “pai, tem algum tenista do Brasil campeão com uma raquete como esta?”. O sorriso sutil em direção ao canto esquerdo do lábio dele, abriu meu Sagrado Coração, como o de Jesus para a Santa Margarida Maria.
O nome de Maria Esther Bueno surgiu sem que meu pai titubeasse, ficando sacramentado nas minhas lembranças. Ele narrava tudo o que sabia a respeito dela no Tênis e suas conquistas. Para a minha sorte, papai era ávido por jornais e rádio, além de fã e praticante de vários esportes. Então, o pouco que se podia saber a respeito de Maria Esther foi o suficiente para despertar o meu lado investigativo e esfomeado por conhecimento. Naquela época, final dos anos 80, se iniciava as transmissões de Tênis pela TV, ainda tímidas, tudo o que se podia saber a mais era espinhoso. As únicas fontes de informações para uma criança daquela idade e tempo, além dos avós e pais, eram as bibliotecas públicas e do colégio, a revista Superinteressante e a Barsa – uma enciclopédia que vinha em volumes de capa dura, e que eu e meus irmãos pedimos como presente de Natal. Fontes, obviamente, insuficientes. Tardou alguns meses para que eu conseguisse fotos e um vídeo curto em fita VHS com a imagem da Maria. Foram necessárias visitas à canais locais de TV e à Universidade. Não pense o leitor que os obstáculos advinham por se tratar de Tênis, um esporte fora do hall do mais praticado e assistido pelos brasileiros. Naquela década, até para se saber mais sobre os Beatles, fora do disco de vinil, eu precisei realizar uma incursão à escola de Música da UFMG. Help!
As imagens de Maria Esther, em fotos e vídeo, me fascinaram. Não há adjetivos à altura que elucidem a importância e o significado de suas conquistas. Em um tempo onde todo aquele esforço não rendia premiações em dinheiro, seus títulos são, ao meu olhar, uma prova irrefutável de amor e dedicação ao Esporte. É o genuíno e pleno Espírito Esportivo, ou Olímpico, a cada dia mais raro nos esportes. Numa época em que os tenistas não contavam com toalhinhas a tiracolo para enxugar o rosto a cada ponto disputado, não havia água para ingerir, banana para engolir ou guarda-sol para protegê-los das incidências e insistências solares, enquanto pensam e retomam o fôlego sentados nas cadeiras. A propósito, não existiam cadeiras para os tenistas se sentarem, eles aguardavam em pé o tempo necessário para a entrada e as viradas em quadra.
Talvez, o desprendimento ao materialismo reforce o olhar e os gestos românticos de Maria – a Esther, ou Estrela como a origem do nome sugere – em quadra. A beleza e a naturalidade com que seu corpo e mente se impunham em quadra, atraindo a atenção e provocando desejos inalcançáveis, revelam um Tênis docemente agressivo, técnico, talentoso e inteligente. Um Tênis-Acalanto – ao nosso amor espiritual (que advém da vontade racional) e ao nosso amor sensível (movido à paixão pelo apetite sensitivo). Philippe Chatrier, outro tenista que compõe o Tennis Hall of Fame (Maria foi selecionada a compor o grupo seleto em 1978), quando editor da Tennis de France (revista especializada e uma das mais conceituadas na época em que Maria Esther Bueno conquistou seus títulos) escreveu assim sobre nossa querida e eternizada tenista, em 1959: “Maria Esther joga um Tênis perfeito. Seu estilo é tão puro que acharíamos normal se ela ficasse horas na quadra sem cometer sequer um erro”.
Ontem, 9 de junho – Dia do Tenista, a quadra principal de Roland Garros concebeu uma nobre homenagem e menção à Maria Esther Bueno na Cerimônia de Abertura da final feminina. O público de Paris, em pé, prestou sua aclamação entusiástica e calorosa por duradouros e indeléveis minutos. Doía em Maria Esther não receber o mesmo reconhecimento por sua representatividade no Esporte aqui no Brasil. Era válida a sua dor. Às vezes, somos um país imediatista, sem memória e não protetor das boas tradições. Às vezes, somos um país onde os fatos ocorridos no passado soam antiquados e insignificantes. Somos um país carente, miserável, de Patriotismo. Assiduamente somos um país que não busca narrar sua própria História, o outro quem narre. E, assim, Wimbledon segue contando com muita riqueza a história da nossa histórica Maria Esther Bueno. Quem puder dar uma passadinha logo ali, na biblioteca do Wimbledon Lawn Tennis Museum, em Londres, que se deleite com o que aqueles velhinhos imortais e sábios sabem fazer com a biografia do Tênis e de seus protagonistas. Não estamos falando de um capítulo ou outro sobre ela em um livro ou matéria que o Brasil já se esforçou em fazer. Em Wimbledon, Maria Esther ocupa seu merecido lugar de destaque no clube mais tradicional e renomado do Tênis. Na parte externa ou interna o que não falta é fotografia ou escrito sobre ela. Só não é Santa porque seria um pecado digno de excomunhão e todos aqueles anciãos, assim como eu, sonham em estender toda aquela relva, petúnias e memórias para o lado de lá. Para o desconhecido. Porque desconhecida Maria Esther jamais circulou naquele solo.
Ao contrário de nós mortais, imortais como Maria Esther Bueno – imortais no sentido de que não dependerão de entes familiares para serem lembrados geração após geração – permanecerão intactos no Esporte, na História. Daqui a alguns séculos quando algum curioso ou guardião quiser saber quem foi a maior tenista sul-americana do século XX, estampado na tela, seja de vidro ou holograma, estará o nome entrelaçado a uma saudade estranha: Maria Esther Bueno. Um Pedaço de Nós.